quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Dois pequenos poemas

 



Onde posso encontrar o ruido do tempo? - 

perguntei à criança. Ela cegou-me: 

Mergulhando os dedos no verde do mar.



Esqueci as amendoeiras em flor

A enevoarem o azul do céu

O Outono enrugou o meu olhar



O que se pode encontrar num verso

 


Entra-se no poema com o espírito aberto à plenitude.

É essa a verdadeira busca.

Depois, a satisfação da descoberta. 

E tantas há a fazer! 


Uma ideia original no fluir por vezes amargo do pensamento. 

Uma perspetiva nova a abrir no meio do que já estava cansadamente gasto. 

A peça que faltava num puzzle há tanto tempo perseguido. 

A beleza pura, não contaminada pela vulgaridade das regiões mais baixas 

(obstinadamente coladas à vida do dia a dia). 

Uma compreensão mais larga e iluminada que leva à expansão do espírito,

arrancando as palas que roubam o sonho e o horizonte. 

A fraternidade com o poeta; 

ou, se sou eu o poeta, 

a fraternidade com as coisas mais vulneráveis e frágeis do mundo: 

a flor, 

o tremular das ondulação de um lago, 

o olhar aberto e desarmado de uma criança, 

o sorriso hesitante de uma jovem mulher. 


Enfim, descobrir-se mais vivo, 

em vez de apenas existir; 

recuperando a beleza,

em vez de apenas fugir da fealdade . 

 

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Perdemos as crianças

Caminhamos pelas ruas desta cidade.

E ouvimos.

Ouvimos homens nas esplanadas.

Ouvimos martelos nas obras.

Ouvimos mulheres nas compras.

Ouvimos carros, motas e camiões.

Ouvimos cães a ladrar.

Às vezes, até conseguimos ouvir pássaros.

Mas onde estão as crianças?

Não vemos nenhuma, não ouvimos nenhuma.

Nos espaços públicos desta cidade,

Não há espaços de partilha intergeracional.

Não há encontros com crianças

Nem entre crianças

A cidade rejeitou-as.

A cidade despida de alegria

Aborreceu-as, destituiu-as.

Não as quer ver, não as quer ouvir.

E elas foram enclausuradas

Em casas-jaulas

Em escolas-prisões

Em horários de trabalho engaiolado

Banidas de todo o espaço público.

Que só é público para os adultos.

Bom, primeiro para os carros

Só depois para os adultos

Uma cidade vazia de crianças:

Crianças não votam no partido

Crianças não compram o local onde vivem

Então, que importa? Quem se importa?

O que é bom para o mercado

É mau para as crianças

É mau para nós

Cidades que não acolhem crianças com prazer.

Cidades sem uma comunidade completa, integral.

Cidades, todas as cidades.

Civilização mutilada, alienada.

Moribunda?


sábado, 12 de junho de 2021

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Luz

Luz no chão torrado

Árvores e sombras e pardais

Rompendo através do calor


Talvez a um sorriso

Não envelheço. Gasto-me.

O velho sempre viveu comigo

me pesou, me arrastou.

Nunca me libertei,

pois até os sonhos foram de velho.

Sempre esperei. Agora vou deixando. de.

Enquanto chego, todos os dias,

a lado nenhum. Talvez a um livro.

Talvez a uma tonalidade de luz.

Talvez a um sorriso.


Ventos passando

Ventos passando

através do bosque sombreado

pesar

meu manto com

o cheiro de flores


Abstraído na literatura, o crepúsculo desce sobre mim

Abstraído na literatura, o crepúsculo desce sobre mim

Uma brisa enfuna levemente a bainha solta da camisa

Sem ver, caminho pelos campos de névoa

Onde estão os pássaros? E as pessoas?


quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Jovens tocadoras de harpas

Jovens tocadoras de harpas
Acariciam seus cabelos ruivos e finos
E cantam a espuma de todos os mares

Há um quadro cinzento
Guardado numa arrecadação cega
Onde cresce uma infância sem luzes

O que vejo quando me distancio

sábado, 13 de janeiro de 2018

Não vens na minha direção

Não vens na minha direção
Mas, apesar de tudo,
Um sorriso largo espraia-se
Na noite luminosa do teu rosto

Deslizam-te das mãos as flores dos teus dias
Como palavras sem sonhos dentro
Deixam-te os dedos feridos
No mar gelado dos gritos
Angustiados dos pavões no parque

Do silêncio resta um leve perfume

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Quero acabar com a memória

Quero acabar com a memória
Entregar todo o meu passado
e o dos outros
Ao esquecimento onde, no fim de contas,
Tudo vai acabar.

Mas a memória levanta-se
Como um nevoeiro durante a noite
Enche-me os sonhos de rostos
De corpos que imprimem a sua realidade,
Sem se apartarem de mim,
Nas sensações vivas do meu corpo.

E quando acordo
Pergunto-me onde estará
O espírito daqueles que
Abandonaram o seu corpo no meu.

Pergunta irrespondível
Cuja única utilidade é amparar-me
Na fragilidade onde me vou movendo
Até o espírito conseguir ficar quase tão
Aprumado como as minhas
Pernas, o meu tronco, a minha cabeça,
O bater do meu coração.

domingo, 7 de janeiro de 2018

O céu cada vez mais azul

O céu cada vez mais azul,
o azul a nascer do branco,
enquanto o silêncio da criança cresce entre paredes.
Há uma página de jornal encostada à berma,
a queimar com poemas ilegíveis contra o sol.
Tudo parado,
com os olhos das mulheres domésticas
por detrás das janelas a observarem,
à espera do momento certo.
Alguém faz um desenho na margem de um livro antigo.
Como um latido cansado a ecoar no espaço,
a ideia de rasgar velhos documentos,
a identidade e coisas assim,
velhas decisões.
Depois, o brilho e a cegueira.
Numa rua de Olhão, à uma da tarde, eu pensava nos meus sentimentos transviados.
Sem nuvens.

Dois pequenos poemas

  (imagem tirada de  Haiku, poesía japonesa para liberar las emociones ) Onde posso encontrar o ruido do tempo? -  perguntei à criança. Ela ...